Entende-se por contrato de gaveta o meio jurídico particular e informal utilizado para registrar negócios firmados, mas sem que terceiros – além dos contratantes – tomem conhecimento deles.
O contrato de gaveta é comumente utilizado na compra e venda de imóveis, principalmente os que ainda estão sendo financiados, não havendo qualquer tipo de formalização dessa transação oculta no Cartório de Registro de Imóveis.
Exemplificaremos para simplificar:
José firmou um financiamento com o Banco Financiador de Imóveis, adquirindo um imóvel em seu nome. Porém, por dificuldades, José não conseguiu mais pagar o financiamento, e diante disso, firma um contrato de gaveta com Paulo, que irá assumir indiretamente suas prestações, sem que o banco esteja ciente.
Ou seja, na teoria – e aos olhos de qualquer pessoa, inclusive do banco – José é quem está pagando e quem irá responder por toda e qualquer repercussão do financiamento; mas, na prática, existe um contrato de gaveta entre ele e Paulo, que comprou o imóvel financiado e está adimplindo as parcelas devidas.
No contexto do exemplo anterior – que é o mais comum na prática –, o contrato de gaveta é realizado entre o vendedor, que contraiu financiamento com a agência financeira/bancária, e o comprador, chamado de “gaveteiro”.
O vendedor permanece como o titular do negócio firmado com o banco até que seja realizada a quitação de todo o procedimento de financiamento. Assim, o “gaveteiro” do contrato de gaveta é considerado um simples possuidor do bem. Para o banco, o devedor é o primeiro comprador.
Trata-se, portanto, de um documento particular de compra e venda, no qual não há a interferência de nenhuma agência imobiliária ou instituição bancária. E, como já citado, o registro atestando a propriedade da parte intitulada no contrato de gaveta como “compradora” não é atualizado perante o Cartório de Registro de Imóveis competente.
Geralmente, nos contratos de gaveta, o registro da transferência da propriedade para o “gaveteiro” ocorre somente após a quitação do financiamento, onde a parte vendedora (que tratou diretamente com o banco e firmou legalmente o financiamento, por meio de um contrato de mútuo), viabiliza a transferência.
Veja: um contrato de gaveta é um “compartimento” (instrumento jurídico) onde podem ser guardados, protegidos e escondidos diversos objetos (compra e venda de imóvel financiado), os quais não se pretende deixar expostos aos olhos de qualquer pessoa (contrato particular e informal, não havendo registro no cartório competente).
Calma! Iremos chegar nessa questão. Por hora, eu digo que, apesar do risco envolvendo esse procedimento, a elaboração de contratos de gaveta é bem mais comum do que se imagina. Isso porque nem sempre esses contratos são chamados assim, mas, na prática, são legítimos contratos de gaveta.
Primeiramente, vale esclarecer que em uma compra e venda formal de imóvel é necessário o registro da transferência da propriedade, que é um documento público, podendo qualquer pessoa ter acesso a ele. Aqui, predomina o chamado princípio da publicidade.
Já na modalidade contrato de gaveta não há publicidade e, em regra, só as partes que firmaram o negócio sabem dessa transação, afinal, não há registro em cartório, estando esse instrumento jurídico apenas nas “gavetas” de quem vende e de quem compra o imóvel.
Quanto às razões de se pactuar um contrato de gaveta, uma delas diz respeito ao fato de terem sido instituídas várias restrições para a compra e venda de bens imóveis, que, inclusive, aumentaram os custos de financiamento.
Como consequência, o contrato de gaveta passou a popularizar-se, tornando-se uma modalidade de fazer negócios bastante comum.
Além disso, vale lembrar que a transferência formal da propriedade de um imóvel apenas é legal se feita por meio de um registro de cartório de imóveis, o que envolve diversos procedimentos burocráticos e o pagamento da altíssima carga tributária que se aplica ao mercado imobiliário e que incide sobre a transação referente à transferência de imóveis financiados.
Assim, a principal ideia de se realizar o pagamento de um imóvel que está em nome de outro alguém é considerada uma estratégia para diminuir os gastos.
Por isso, em vez de as pessoas procurarem uma análise de crédito junto aos bancos, por exemplo, ou de se organizarem para realizar o negócio da forma legalmente permitida, partiu-se para famoso jeitinho brasileiro, por meio de um contrato de gaveta.
O próprio nome “contrato de gaveta” sugere algo obscuro, às escondidas, e isso somado às demasiadas vantagens já citadas nos induz a pensar “isso tá errado! Só pode ser ilegal!”, concorda? Mas, não é bem assim.
Como já mencionado, um contrato de gaveta não tem o seu registro efetivado no Cartório de Registro de Imóveis e, em regra, é feito apenas com o reconhecimento de firma das partes. Mas isso não o torna inválido aos olhos da lei.
Trata-se, portanto, o contrato de gaveta de um instrumento não oficial, cuja validade, porém, se restringe, exclusivamente, às partes que o assinam (vendedor e comprador/gaveteiro). Em outras palavras, essa modalidade é válida para pactuar obrigações entre as partes, mas não vale perante terceiros.
Vale destacar que os bancos responsáveis pelo financiamento de imóveis também entendem que o contrato de gaveta é um mecanismo irregular.
Eles partem do entendimento de que o mutuário do Sistema Financeiro de Habitação – SFH deve transferir a terceiros os direitos e obrigações decorrentes do respectivo contrato, exige a formalização da venda e que ela seja realizada em ato concomitante à transferência obrigatória na instituição financiadora.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça – STJ entende que esse mecanismo pode ser legal e permite que se discuta judicialmente as obrigações e os direitos assumidos entre as partes de um contrato de gaveta.
O tribunal considera também que, com a quitação de todas as parcelas, não seria possível realizar a anulação de uma provável transferência, já que, em regra, não foram causados prejuízos ao Sistema Financeiro de Habitação – SFH.
Na prática, em caso de inadimplência das parcelas do financiamento, por exemplo, José, o vendedor, poderá cobrar a dívida de Paulo. Fato! Porém, ao ser, por sua vez, cobrada pela Banco Financiador de imóveis, não poderá a legítima proprietária do imóvel indicar o “gaveteiro” como real devedor, pois, juridicamente falando, ele sequer existe na relação negocial com o banco.
Apesar de ser uma prática que, à primeira vista, parece vantajosa, esse tipo de contrato envolve uma série de riscos para ambas as partes.
O principal fato disso é que a confiança entre as partes é fundamental para garantir a concretização do negócio, já que a efetiva legitimidade depende das condutas esperadas e pactuadas entre ambas.
É por isso que o risco é maior, pois pode ocorrer má-fé da parte que vende ou da que compra o imóvel por meio de um contrato de gaveta. Em tese, esse fato seria considerado fraude, contudo, a ausência de registro torna o provável processo judicial algo mais complexo.
Como o contrato de gaveta é considerado um documento não oficial, o reconhecimento de direitos e obrigações se restringe às partes. Por isso, é fundamental que se esteja ciente dos riscos desse tipo de negócio.
A parte que se qualifica como compradora em um contrato de gaveta, também conhecida como “gaveteira”, suporta diversos riscos.
Pegando o exemplo de José (vendedor) e de Paulo (comprador/gaveteiro), imaginemos que este esteja morando com sua família no imóvel adquirido por meio do contrato de gaveta.
Antes de findar o financiamento realizado formalmente por José e pago informalmente pelo “gaveteiro”, porém, Paulo falece.
Nesse caso, há o risco de sua família ficar desabrigada, já que o imóvel não poderá ser incluído na divisão de bens, haja vista que, legalmente, ele não era de propriedade do falecido.
Se, por outro lado, em vez de Paulo, quem faleceu foi José, o imóvel será dos herdeiros deste, que era o legítimo proprietário do imóvel, deixando a família de Paulo desamparada.
Outra provável ocorrência é a venda regular do imóvel para uma terceira pessoa. Imagine que José, após adimplir o financiamento com os valores pagos por Paulo, utilizando-se de demasiada má-fé, realiza a venda formal do bem para Antônio.
Isso poderá ser feito em cartório, já que não há um registro apto a impedir essa operação, pois não existe a comprovação pública perante terceiros de que a propriedade tenha sido transferida pelo contrato de gaveta. Trata-se a situação de um típico golpe no segmento imobiliário.
Assim, um vendedor de má-fé poderá vender o bem para outros interessados, deixando o “gaveteiro” trancado para agir de imediato, sendo preciso este ingressar com uma ação judicial visando a discutir a validade e as condições do contrato de gaveta para, somente após, caso saia vitorioso, cobrar algo do vendedor.
EXEMPLO DE RISCO PARA A PARTE QUALIFICADA COMO COMPRADORA NO CONTRATO DE GAVETA
Como não há registro em cartório, a parte VENDEDORA, de má-fé, poderá vender formalmente o imóvel objeto do contrato de gaveta para uma terceira pessoa, deixado a parte COMPRADORA no prejuízo. Esse é um típico golpe no segmento imobiliário.
O vendedor do imóvel que se utiliza de um contrato de gaveta também está sujeito a uma série de perigos. O principal deles, por exemplo, é o caso de o comprador deixar de pagar as prestações com as quais se comprometeu.
Aqui, o vendedor José se depara com a má-fé de Paulo, que, mesmo anuindo com a obrigação de pagar o valor exato do financiamento firmado entre aquela e o banco Financiador de Imóveis, deixa de arcar com a dívida.
Nessa situação, José poderá ter o seu nome incluído no SPC e SERASA, e o banco poderá executar a dívida diretamente contra ele, que, em regra e juridicamente falando, é o legítimo proprietário e devedor das parcelas do financiamento.
Lembre-se que nem o banco, nem qualquer terceiro sabe da existência do contrato de gaveta – particular e informal – firmado entre José e Paulo.
Seguindo o raciocínio, caso o banco retome o bem ou este seja adquirido em leilão por um terceiro, mesmo assim, o vendedor continuará com o seu nome nos cadastros do banco, o que poderá inviabilizar a obtenção de crédito e a autorização de financiamentos e empréstimos.
EXEMPLO DE RISCO PARA A PARTE QUALIFICADA COMO VENDEDORA NO CONTRATO DE GAVETA
Se a parte COMPRADORA não honrar com sua obrigação de pagar as parcelas devidas em decorrência do contrato de gaveta, é única e exclusivamente a parte VENDEDORA que será cobrada pela agência financeira/bancária e poderá ter seu nome incluído no SPC e SERASA.
Apesar de o contrato ser “de gaveta”, antes de ser guardado, é aconselhável que ambas as partes reconheçam firma em cartório – de preferência, por autenticidade – no momento em que é feita a assinatura do instrumento. Isso irá garantir uma maior autenticidade de anuência ao que consta expresso nas cláusulas do contrato de gaveta.
Outro cuidado a ser tomado é justamente guardar – mas não necessariamente em uma gaveta – o contrato de gaveta e todos os demais documentos, conversas, e-mails e recibos que atestem o negócio firmado e o pagamento das prestações. Isso é essencial para provar que se agiu de boa-fé.
Por fim, mas não menos importante, indicamos que a melhor maneira de conduzir todo e qualquer tipo de contratação, inclusive no que diz respeito a um contrato de gaveta, é valendo-se do auxílio de bons advogados especialistas no assunto.